quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dente Canino, de Giorgos Lanthimos

Fiquei um bom tempo pensando em como fazer minha estréia (*joga glitter*) nesse blog. Faz uma vida que não escrevo resenhas e não conseguia pensar em filmes que vi ultimamente que me inspirassem a escrever (foi mal, “Débi & Lóide 2”). Até que me recordei deste filme grego de 2009 que vi no início de novembro, “Dente Canino” (Κυνόδοντας/Dogtooth).


Tendo ouvido falar um pouco sobre ele nos últimos anos, resolvi dar uma lida na sinopse antes de assistir, o que acabou sendo uma ótima decisão, uma vez que se não a tivesse tomado eu não entenderia praticamente nada do que está acontecendo em cena até uma boa parte do filme. A trama conta a história de uma família composta pelo pai, a mãe, uma filha mais velha, uma filha mais nova e um filho vivendo na área rural da Grécia, que poderia ser perfeitamente a área rural de marte. O clã vive em quase completo isolamento do resto do mundo. Tudo que os filhos aprendem é ensinado pelos pais, “fatos” como: “mar” é uma grande poltrona, “zumbi” é uma pequena flor amarela, o gato é o animal mais perigoso que existe e os aviões que passam no céu são tão pequenos quanto parecem e às vezes caem no jardim. Bizarro até aí? Só piora.

O único com permissão para deixar a propriedade é o pai, que sai todos os dias para trabalhar, e a única pessoa de fora que entra na casa é Christina, colega de trabalho do pai que é paga para ser levada (sempre com uma venda nos olhos) até a casa e lá “satisfazer as necessidades” do filho. Os filhos (todos jovens adultos que agem e são tratados como crianças) também ouvem a história inventada pelos pais sobre um irmão que viveria além da cerca viva em volta da propriedade, separado da família por mau comportamento, condenado a viver só no mundo perigoso e cruel.

Como pode-se notar, a história é surreal, e pode ser vista tanto como um tipo de filme de terror quanto como uma comédia de humor ultra negro. Conforme a estrutura de fantasia criada pelos pais começa aos poucos a mostrar rachaduras, as coisas vão passando de desconfortáveis a seriamente perturbadoras, com os danos que uma vida vivida na ignorância pode causar vindo à tona. Ao mesmo tempo, surgem constantes momentos de humor que provocam risos dificilmente agradáveis (mais uma situação de “que desgraça, por que eu to rindo disso?”) sempre causados pelo “WTF” da situação, como quando uma das filhas pergunta à mãe o que é uma “vagina” - “um grande abajur”, a mãe responde.

O filme é parado e silencioso, mas não achei que isso o tornou cansativo ou chato, pelo contrário, o ritmo flui perfeitamente, o tom quieto e calmo junto com a fotografia com muito uso de cores claras e cenas iluminadas, faz um contraste chocante com a história perturbadora, principalmente em cenas de violência, que surgem praticamente sem aviso e causam o sobressalto de um objeto caindo com estardalhaço na sua casa no meio da noite.


As atuações são excelentes, com destaque para Aggeliki Papoulia como a filha mais velha. Vi algumas reclamações sobre o filme afirmando ser difícil se conectar com os personagens, mas, a despeito da história absurda, consegui simpatizar com a personagem dessa moça (ela não tem nome; nenhum deles tem), e me peguei torcendo muito para que ela encontrasse, de alguma forma, algum tipo de felicidade em sua vida miserável.

O filme, a meu ver, é uma grande alegoria aos aspectos mais arcaicos da sociedade que se mantêm vivos e em vigor mesmo em tempos contemporâneos. A família vive literalmente em um patriarcado, o pai é quem toma as decisões (às vezes discutindo-as com a mãe, mas a sua palavra é a final) e dá as ordens, ele é o único que pode sair da propriedade; o filho tem suas necessidades sexuais reconhecidas, recebendo Christina para satisfazê-las, enquanto as das filhas são completamente ignoradas; qualquer ideia e comportamento apresentados pelos filhos que não estejam de acordo com os “ensinamentos” dos pais são severamente punidos, e conhecimento e descobertas são as piores coisas que podem acontecer a uma pessoa.

Gostaria de comentar muitos outros detalhes e cenas marcantes (como uma cena de dança que deve entrar para o hall da fama do cinema moderno), mas não quero correr o risco de deixar spoilers. Aos interessados em ver o poder e os danos da ignorância e opressão retratados de uma das maneiras mais criativas e surreais dos últimos tempos, recomendo fortemente “Dente Canino”.


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