Fiquei um bom tempo pensando em como fazer minha estréia
(*joga glitter*) nesse blog. Faz uma vida que não escrevo resenhas e não
conseguia pensar em filmes que vi ultimamente que me inspirassem a escrever
(foi mal, “Débi & Lóide 2”). Até que me recordei deste filme grego de 2009
que vi no início de novembro, “Dente Canino” (Κυνόδοντας/Dogtooth).
Tendo ouvido falar um pouco sobre ele nos últimos anos,
resolvi dar uma lida na sinopse antes de assistir, o que acabou sendo uma ótima
decisão, uma vez que se não a tivesse tomado eu não entenderia praticamente
nada do que está acontecendo em cena até uma boa parte do filme. A trama conta
a história de uma família composta pelo pai, a mãe, uma filha mais velha, uma
filha mais nova e um filho vivendo na área rural da Grécia, que poderia ser
perfeitamente a área rural de marte. O clã vive em quase completo isolamento do
resto do mundo. Tudo que os filhos aprendem é ensinado pelos pais, “fatos”
como: “mar” é uma grande poltrona, “zumbi” é uma pequena flor amarela, o gato é
o animal mais perigoso que existe e os aviões que passam no céu são tão
pequenos quanto parecem e às vezes caem no jardim. Bizarro até aí? Só piora.
O único com permissão para deixar a propriedade é o pai, que
sai todos os dias para trabalhar, e a única pessoa de fora que entra na casa é
Christina, colega de trabalho do pai que é paga para ser levada (sempre com uma
venda nos olhos) até a casa e lá “satisfazer as necessidades” do filho. Os
filhos (todos jovens adultos que agem e são tratados como crianças) também
ouvem a história inventada pelos pais sobre um irmão que viveria além da cerca
viva em volta da propriedade, separado da família por mau comportamento,
condenado a viver só no mundo perigoso e cruel.
Como pode-se notar, a história é surreal, e pode ser vista
tanto como um tipo de filme de terror quanto como uma comédia de humor ultra
negro. Conforme a estrutura de fantasia criada pelos pais começa aos poucos a
mostrar rachaduras, as coisas vão passando de desconfortáveis a seriamente
perturbadoras, com os danos que uma vida vivida na ignorância pode causar vindo
à tona. Ao mesmo tempo, surgem constantes momentos de humor que provocam risos
dificilmente agradáveis (mais uma situação de “que desgraça, por que eu to
rindo disso?”) sempre causados pelo “WTF” da situação, como quando uma das
filhas pergunta à mãe o que é uma “vagina” - “um grande abajur”, a mãe
responde.
O filme é parado e silencioso, mas não achei que isso o
tornou cansativo ou chato, pelo contrário, o ritmo flui perfeitamente, o tom
quieto e calmo junto com a fotografia com muito uso de cores claras e cenas
iluminadas, faz um contraste chocante com a história perturbadora,
principalmente em cenas de violência, que surgem praticamente sem aviso e
causam o sobressalto de um objeto caindo com estardalhaço na sua casa no meio
da noite.
As atuações são excelentes, com destaque para Aggeliki
Papoulia como a filha mais velha. Vi algumas reclamações sobre o filme
afirmando ser difícil se conectar com os personagens, mas, a despeito da
história absurda, consegui simpatizar com a personagem dessa moça (ela não tem
nome; nenhum deles tem), e me peguei torcendo muito para que ela encontrasse,
de alguma forma, algum tipo de felicidade em sua vida miserável.
O filme, a meu ver, é uma grande alegoria aos aspectos mais
arcaicos da sociedade que se mantêm vivos e em vigor mesmo em tempos
contemporâneos. A família vive literalmente em um patriarcado, o pai é quem
toma as decisões (às vezes discutindo-as com a mãe, mas a sua palavra é a
final) e dá as ordens, ele é o único que pode sair da propriedade; o filho tem
suas necessidades sexuais reconhecidas, recebendo Christina para satisfazê-las,
enquanto as das filhas são completamente ignoradas; qualquer ideia e
comportamento apresentados pelos filhos que não estejam de acordo com os
“ensinamentos” dos pais são severamente punidos, e conhecimento e descobertas
são as piores coisas que podem acontecer a uma pessoa.
Gostaria de comentar muitos outros detalhes e cenas
marcantes (como uma cena de dança que deve entrar para o hall da fama do cinema
moderno), mas não quero correr o risco de deixar spoilers. Aos interessados em
ver o poder e os danos da ignorância e opressão retratados de uma das maneiras
mais criativas e surreais dos últimos tempos, recomendo fortemente “Dente
Canino”.
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